Meu retorno àquele ambulatório de quimioterapia, local onde há pouco mais de um ano fazia visitas como acompanhante de minha avó, deu-se por conta de uma doação: algumas revistas para os pacientes que pacientemente passam horas recebendo poderosos produtos químicos em suas veias e que para esquecer de onde estão, do que sofrem, precisam se distrair, ler. O tratamento de minha avó não funcionou. Presenciei um processo lento, doloroso e injusto, no qual um câncer consumiu primeiro seu frágil espírito e depois, insatisfeito, seu forte corpo.
Ao entrar na sala onde os pacientes recebem a medicação intravenosa revi e lembrei-me daqueles rostos familiares, médicos e enfermeiros. Eu -em um processo unilateral- os reconheci. Por parte deles, eu era mais um estranho: talvez um acompanhante em busca de algum paciente ou simplesmente alguém que quisesse saber onde era o banheiro.
Uma sensação incômoda tomou conta de mim. Senti-me traído. Como se naquele momento, tivesse assumido a pessoa de minha avó frente àquelas pessoas: enquanto eu, "morta", tinha abandonado essa vida depois de muita dor e sofrimento, ali, para aquelas pessoas que propuseram me salvar, tudo continuava igual: os mesmos medicamentos, a mesma rotina, mais pacientes, mais casos. Senti-me traído. Estavam todos ali, trabalhando normalmente, alguns já prontos para o almoço, outros, chegando para assumir seus postos. Não entendo ao certo o porque, mas o que senti foi a dor de uma traição. Lágrimas vieram aos olhos.
Quando rapidamente deixei o lugar, um mal estar tomou conta de meu corpo. A sensação de traição continua e vem à tona quando lembro-me daqueles rostos sorridentes, e da dor de minha avó. Talvez se não nos propuséssemos a à qualquer custo prolongar a vida, e mais, a acreditar que a vida deve ser prolongada, sentissemos menos dor; talvez não sobraria estado para a sensação da traição cometida por aqueles que não conseguem salvar uma vida, esses que falham.